Em um experimento inédito de um laboratório da USP focado em mobilidade urbana e segurança pública, a Internet das Coisas associada à descentralização de processamentos com uso de computação de borda e a cooperações de redes enxame começa a ser testada em uma estrutura urbana crítica: a cidade de São Paulo.
by Roberta Arinelli
A pressa faz parte do dia a dia das grandes cidades. Protagonizando uma cena cotidiana, um pedestre aguarda para atravessar a via em um cruzamento com semáforo. Após alguns minutos, para não se atrasar para o trabalho, decide não esperar mais. Desrespeita o sinal vermelho, aperta o passo, é surpreendido por um carro e acaba sendo atropelado. O motorista presta socorro, mas demora até conseguir ligar para o serviço de emergência e tem grande dificuldade de explicar sua localização exata. Aqui, cada minuto perdido pode determinar o desfecho desse acidente.
Apesar de hipotética, a situação descrita acima não é incomum. Em São Paulo, a mais populosa metrópole do país, foram registrados 114,2 mil acidentes de trânsito com vítimas nas vias urbanas em 2019, de acordo com o Infosiga SP. Os dados mostram que pedestres e motociclistas são os mais afetados. Atropelamentos em cruzamentos representam 27% do total de casos, sendo que em 79% deles havia sinalização semafórica em funcionamento. O cenário é trágico, mas a boa notícia é que há explicações para essa tendência, e soluções tecnológicas estão sendo testadas para diminuir riscos.
A fim de promover ações mais efetivas em mobilidade urbana e segurança pública, o Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico (LSI-TEC) e a Universidade de São Paulo (USP) conduzem projetos-piloto de Internet das Coisas (IoT, do inglês Internet of Things) com sensores e eletrônica embarcados em veículos e semáforos, unindo tecnologias de ponta, pesquisa e apoio governamental na busca por resultados capazes de contornar as estatísticas.
IoT como atalho na resolução de problemas urbanos
Uma transformação disruptiva e irreversível na sociedade e na economia mundial é esperada nas próximas décadas com o uso disseminado da IoT, que aprimorará e criará novos modelos de negócios.
Para incentivar a competitividade no mercado brasileiro nessa escalada tecnológica, o estudo “Internet das Coisas: um plano de ação para o Brasil”, liderado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), priorizou os seguintes ambientes para investimento: cidades, saúde, rural e indústria.
No plano de ação, as cidades são vistas como um ponto de dor no Brasil, país em expansão e com grande tendência à concentração urbana. Nesse contexto, duas prioridades foram definidas pelo BNDES sob os pontos de vista econômico e social: a segurança urbana e a mobilidade.
O campus da USP Butantã, na Cidade Universitária, em São Paulo, será utilizado como campo de teste de protótipos que irão compor dois projetos-pilotos de IoT nessas áreas, conduzidos pelo LSI-TEC e financiados pelo banco no âmbito da política pública. Junto à execução dos pilotos, diferentes instituições cooperam em variadas frentes. A Polícia Militar do Estado de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, a Companhia de Engenharia de Tráfego e a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes de São Paulo serão beneficiárias finais e atuam também como provedoras de campo de prova real.
Conselheiro científico-tecnológico dos pilotos, o professor titular da Poli-USP Marcelo Zuffo, também coordenador da plataforma Inova-USP e do Centro Interdisciplinar que pesquisa a interação do ser humano com a cidade inteligente, ressalta a necessidade de participação de diferentes atores para a execução da inovação em larga escala no país.
“Para que seja mantido o objetivo de utilização da tecnologia em prol da melhora da sociedade de fato, duas dimensões precisam ser consideradas: a pesquisa científica que traz o desenvolvimento e a inovação, conduzida na universidade; e as políticas públicas, fundamentais para que a transformação da sociedade seja alcançada”, afirma.
Não há dúvida sobre o quanto novas tecnologias alteram rapidamente a maneira como a população interage com as cidades, mas o desenvolvimento de projetos como esse é importante para medir empiricamente esses impactos.
“A ideia é avaliar tecnologias de IoT para entender como elas podem trazer benefícios reais para a sociedade, trabalhando nos principais temas de interesse prioritário das cidades brasileiras”, explica a coordenadora do projeto pela LSI-TEC e professora da Poli-USP, Laisa Costa De Biase.
Mobilidade e segurança pública
O projeto piloto que visa ao aprimoramento da mobilidade urbana foca na acessibilidade da cidade e na priorização do fluxo de pedestres. Hoje, os semáforos priorizam o fluxo de carros e de outros veículos, o que aumenta o risco de acidentes com pedestres, que tendem a atravessar fora do tempo curto estipulado. A tecnologia IoT e a IA buscam, então, identificar o melhor gerenciamento desses fluxos.
A integração de todos os semáforos com IoT é capaz de criar uma inteligência coletiva. “É como se a rede semafórica do município de São Paulo, que é um dos maiores adensamentos urbanos do mundo, passasse a ser um cérebro especializado em pensar a mobilidade. Essa é a inteligência coletiva swarm da rede semafórica dessa grande cidade, que conta hoje com milhares de semáforos”, ilustra Marcelo Zuffo.
Para a segurança pública, o projeto utiliza um sistema que permite maior capilaridade do monitoramento da cidade e um atendimento mais ágil em situações de emergência. A tecnologia é capaz de identificar automaticamente um cenário de risco e enviar uma mensagem com informação geolocalizada diretamente para o Centro de Operações da Polícia, sem a necessidade de uma ligação telefônica de um cidadão para avisar sobre uma situação de perigo ou sobre um evento que demande socorro imediato. O posicionamento automático encurta significativamente o tempo de explicação, reduzindo a transmissão da informação para segundos.
Também é previsto o aumento da capilaridade do sistema de monitoramento de placas para a identificação de carros envolvidos em ações criminosas ou com comportamentos de risco, por exemplo.
Essas transformações fazem parte do conceito de cidades inteligentes, descritas pelos pesquisadores como estruturas urbanas altamente amparadas por tecnologias de comunicação e informação, integrando diversos serviços e trazendo estratégias mais eficientes, sempre visando ao bem-estar da população. E a IoT será o meio que permitirá que a eletrônica esteja embarcada em diversos objetos e sensores que captam informações e permitem o uso da inteligência artificial (IA), de softwares e programações com essa finalidade.
Primeiro passo: computação na borda
Nos dois projetos, são utilizadas tecnologias não licenciadas de quinta geração, com pequena banda, baixo consumo energético, longo alcance e pequenos pacotes de dados.
Alinhados à visão de computação na borda (edge computing, em inglês), além de serem capazes de identificar eventos de interesse, os dispositivos fazem grande parte da computação e tomam decisões, otimizando o processo de envio de informações para os servidores.
“Ocorre o envio de mensagens do que foi identificado, em oposição ao modelo mais tradicional de IoT, que captaria e enviaria as informações brutas para que elas fossem processadas em um servidor central na nuvem”, detalha Laisa De Biase.
Uma nova visão de infraestrutura urbana inédita no mundo começa, então, a ser criada. O uso da tecnologia na infraestrutura urbana não é uma ideia nova, mas a descentralização da IA para os dispositivos no campo representa um momento de disrupção tecnológica.
No entanto, a mudança do processamento realizado em um supercomputador central, na nuvem, para a decomposição da inteligência em toda infraestrutura, como microcomputadores, leva a um problema de consumo de energia. Por isso, os sistemas precisam se comunicar, precisam se proteger e precisam rodar a IA com baixa energia, e a única forma de se fazer isso de maneira sustentável é por meio da cooperação.
One more thing: redes enxame
Esse mecanismo é chamado de cooperação enxame ou, em inglês, swarm computing. O conceito, que é justamente o extremo da visão da computação na borda, é o que dá base ao trabalho executado pelo grupo de pesquisa da USP em parceria com a LSI-TEC.
Em cenários que retratam problemas de segurança, como ataques hackers, militares ou desastres naturais, a abordagem swarm é considerada resiliente. Assim como ocorre em um formigueiro, enquanto um semáforo estiver trabalhando, ele estará configurado para sempre manter a melhor qualidade de vida possível para a população. Para contornar questões relacionadas à falta de segurança em redes de comunicação de baixa energia, é utilizada a criptografia baseada em plataformas abertas e não proprietárias.
As tecnologias atuam então para que esses dispositivos consigam se encontrar e cooperar a partir de um controle de compartilhamento de recursos, de uma infraestrutura de segurança robusta e melhor distribuída, sem depender tanto de uma central de controle.
“No melhor de nosso conhecimento, somos o único experimento do mundo aplicando redes swarm em IoT com computação na borda em uma infraestrutura urbana crítica como a cidade de São Paulo”, destaca o professor.
Menos custos, menos tempo, menos vidas perdidas
O projeto objetiva a redução de problemas econômicos e a proteção à vida, envolvendo segurança e mobilidade, como a diminuição do tempo de atendimento em casos de acidentes, o aumento na eficiência das abordagens policiais e a otimização do processo de programação de semáforos, contribuindo para uma maior segurança de pedestres e melhores condições de tráfego. Ao fim, a consultoria Deloitte fará a mensuração dos resultados das viabilidades técnica, econômica, regulatória e do modelo de negócio.
“A ideia não é apenas testar o piloto, mas sim permitir que ele possa ser replicável em outros ambientes, disseminando o case. E o uso das tecnologias abertas, de modelos que possam ser interoperáveis, facilita a ampliação da aplicação”, conclui Laisa.
No futuro, espera-se que um atropelamento, como aquele narrado no início deste artigo, possa ser evitado ou ter danos mitigados por meio da tecnologia incorporada às cidades.
Este post foi produzido por Roberta Arinelli, Diretora Médica da ORIGIN Health e Editora-Executiva e colunista da MIT Technology Review Brasil.