Quando um aplicativo fornece tudo a você, perdê-lo torna-se algo insustentável.
by MIT Technology Review
Sei que essa será uma semana longa para todos vocês atentos às notícias chinesas. Novas reportagens parecem estar saindo a cada minuto sobre o vigésimo congresso do Partido Comunista da China, que ocorreu no final de outubro. Este é provavelmente o motivo pelo qual artigos sobre a faixa de protesto em Pequim, que aconteceu em meados do mesmo mês, já pareçam antiquados nesse momento.
Já havia escrito sobre a consequência digital desse protesto. Algumas pessoas que compartilharam fotos do ato e outras, que nem mesmo sabiam o que haviam feito de errado, descobriram que suas contas do WeChat haviam sido banidas. Elas estavam desesperadas, pedindo desculpas por terem falado minimamente sobre o protesto e implorando publicamente para que a Tencent, empresa proprietária do super app, restaurasse suas contas.
Porém, enquanto escrevia percebi que um fator ao qual não dou tanto valor pode não ser tão intuitivo para pessoas de fora da China. Uma conta do WeChat é realmente tão valiosa? Por que é tão devastador não conseguir usar o aplicativo?
De forma simples: na China, sua conta do WeChat constitui quase que toda a sua vida digital e social.
Um motivo para isto é o fato de que simplesmente não existem tantas alternativas. Messenger, WhatsApp, Telegram e Signal são todos aplicativos bloqueados, mensagens de SMS são repletas de spam e notificações de serviços, iMessage alcança um público pequeno, visto que apenas cerca de 20% dos smartphones na China são iPhones (comparados com os mais de 50% nos Estados Unidos), e e-mail é basicamente inexistente entre a população em geral. Independente de você estar falando com um membro da família, um amigo da escola ou um colega de trabalho, o WeChat é a única saída.
Apesar de ter começado dominando mensagens individuais ou em grupo, ao longo do tempo o WeChat incorporou todos os serviços da internet que alguém possa desejar: pagamento digital, compras, streaming, fazer networking, serviços de transporte… pense em qualquer serviço e ele provavelmente estará lá. Em 2017, o WeChat até mesmo lançou “mini programas” dentro do aplicativo, que basicamente permitiam o usuário a acessar serviços que não são da Tencent, como Airbnb, Weibo e outras ferramentas de trabalho, sem precisar sair da plataforma. É todo um sistema operacional dentro de um aplicativo. Soa muito conveniente, não é mesmo? Mas isso significa que você nunca mais sairá do aplicativo e ponto final.
Logo, perder uma conta do WeChat significa perder todos esses serviços. Como escrevi, conseguir retomar sua conta do WeChat não é algo fácil; na verdade é mais simples ganhar novamente o acesso a esses serviços individualmente. Mas, mesmo assim, você ainda precisa reconstruir toda a rede social que você pode ter criado no aplicativo ao longo de uma década. “Quando estava adicionando novamente os contatos, fui questionado se eu era um golpista”, um dos usuários banidos me contou. Reparar estas conexões é sem dúvida a parte mais difícil.
Mas o impacto do WeChat não é somente no nível pessoal. A plataforma é tão popular e presente em todos os lugares, que influenciou a sociedade chinesa como um todo.
Yiqin Fu, estudante de ciência política em Stanford (EUA), me contou sobre como o desejo do WeChat por um monopólio no consumo de conteúdo até mesmo moldou o funcionamento da criação de conhecimento na China. Como as pessoas gastam tantas horas no WeChat todos os dias, elas obtêm a maior parte de suas informações de artigos publicados no aplicativo. Mas estes artigos não são indexados por ferramentas de busca como o Google (uma decisão sobre o produto tomada pelo WeChat). Ou seja, as pessoas são desencorajadas a buscar por conteúdo fora do aplicativo e, em vez disso, simplesmente consomem passivamente o conteúdo que aparece em suas timelines.
Isso também torna difícil achar artigos publicados há pouco tempo. Usando o exemplo de Yiqin Fu, ela poderia escrever uma postagem de blog em inglês e publicar em um site, onde receberia novas visualizações anos após sua publicação, muitas destas, por meio de pesquisas. Se o mesmo conteúdo fosse publicado em chinês e no WeChat, ele desapareceria da atenção do público depois de alguns dias. Consequentemente, criadores, incluindo estudiosos, são incentivados a focar exclusivamente em conteúdo que será consumido naquele momento (curto, fragmentado e de nível superficial).
A natureza fechada e abrangente do sistema WeChat é parte do tempero secreto para seu sucesso comercial. Ao manter usuários presos a um único aplicativo, o WeChat dificulta concorrentes a ameaçarem sua dominância. No entanto, isso também transformou o WeChat em uma ferramenta perigosa de ser usada por aqueles no poder. O banimento de usuários que falaram sobre o protesto em Pequim é um ótimo exemplo. Ao acabar com a existência de plataformas alternativas de comunicação, o WeChat facilitou o governo a vigiar o que é falado pelas pessoas por meio de uma única plataforma central.
Será que a mesma coisa poderia acontecer nos EUA? Eu acho que seria difícil. O WeChat surgiu ainda em 2011, antes de normas serem estabelecidas na China para grande parte de sua internet. Hoje em dia, nos EUA, seria necessário muito mais para um aplicativo, até mesmo um tão popular como Twitter ou Facebook, conseguir adentrar com sucesso os diversos e diferentes mercados que o WeChat conseguiu.
Entretanto, isso não impede que empresas tentem fazer o mesmo. Magnatas da tecnologia, como Elon Musk (ora, vejam só) destacam frequentemente o WeChat como sendo uma expectativa desejável para super apps. Sim, este tipo de plataforma consegue tornar experiências digitais mais convenientes para muitos usuários. Mas a concentração de poder pode ter diversas consequências indesejadas e muitas vezes negativas, pelo menos para os usuários. Isto não é apenas uma análise teórica, já estamos testemunhando isso com o WeChat. Defensores do cenário mágico promovido pelo super app podem dizer que as coisas seriam diferentes se acontecessem em um país democrático. Lamento, mas eu preciso ser mais pessimista que isso.