De generosos subsídios do governo a suporte para baterias de lítio, aqui estão os pontos-chave para entender como a China conseguiu construir uma indústria líder mundial em veículos elétricos.
by MIT Technology Review
Antes que a maioria das pessoas se desse conta da magnitude do que estava acontecendo, a China se tornou a líder mundial na fabricação e compra de veículos elétricos (VEs). E não parece que ela vai deixar esse lugar tão cedo: apenas nos últimos dois anos, o número de VEs vendidos anualmente no país cresceu de 1,3 milhão para impressionantes 6,8 milhões, tornando 2022 o oitavo ano consecutivo em que a China foi o maior mercado mundial neste segmento. Para comparação, os EUA venderam apenas cerca de 800.000 veículos elétricos em 2022.
A indústria está crescendo a uma velocidade que surpreendeu até os especialistas mais experientes: “As previsões são sempre muito baixas”, diz Tu Le, diretor-executivo da Sino Auto Insights, uma empresa de consultoria especializada em transporte. Esse domínio no setor de veículos elétricos não apenas possibilitou um crescimento contínuo durante a pandemia à indústria automobilística da China, mas também impulsionou o país em sua busca para se tornar um dos líderes mundiais em política climática.
Como exatamente a China conseguiu fazer isso? Vários especialistas disseram à MIT Technology Review americana que há muito tempo o governo desempenha um papel importante, sustentando tanto a oferta de veículos elétricos quanto a demanda por eles. Como resultado de generosos subsídios do governo, isenções fiscais, contratos de aquisição e outros incentivos políticos, uma série de marcas nacionais de veículos elétricos surgiram e continuaram a otimizar novas tecnologias para que pudessem atender às necessidades reais dos consumidores chineses. Isso, por sua vez, formou um grande grupo de jovens compradores de carros.
Mas a história de como o setor chegou aqui é mais do que apenas a política estatal chinesa: também envolve a Tesla, pesquisadores chineses de tecnologia de baterias e consumidores no resto da Ásia.
Quando a China começou a investir em veículos elétricos e por quê?
No início dos anos 2000, antes de se aventurar totalmente no campo dos veículos elétricos, a indústria automobilística chinesa estava em uma posição peculiar. Era uma potência na fabricação de carros tradicionais movidos a combustível fóssil, mas, ao mesmo tempo, não havia marcas nacionais que um dia pudessem rivalizar com os fabricantes estrangeiros que dominavam esse mercado.
“Eles perceberam… que nunca superariam as grandes fabricantes de automóveis dos EUA, Alemanha e Japão em inovação de motores de combustão”, diz Tu. E a pesquisa de veículos híbridos, cujas baterias nos primeiros anos tinham um papel secundário em relação ao motor a gasolina, já era liderada por países como o Japão, o que significa que também era um setor onde a China não poderia realmente competir.
Isso levou o governo chinês a romper com a tecnologia tradicional e investir em um território completamente novo: carros movidos inteiramente a baterias.
Os riscos eram extremamente altos. Nesse momento, os veículos elétricos eram apenas experimentos de nicho feitos por marcas como General Motors ou Toyota, que geralmente os descontinuavam depois de alguns poucos anos. Mas a recompensa potencial era grande: uma vantagem competitiva para a China em um segmento importante da indústria automobilística.
Enquanto isso, os países que se destacaram na produção de carros a gasolina ou híbridos tiveram menos incentivos para buscar novos tipos de veículos. Com os híbridos, por exemplo, “[o Japão] já estava no auge, então não conseguiu ver motivos para transicionar [a indústria automobilística] a veículos elétricos: já posso produzir carros com 40% mais eficiência energética do que os outros países ou empresas. Levará muito tempo até me alcançarem”, diz He Hui, analista sênior de políticas e colíder regional da China no Conselho Internacional de Transporte Limpo (ICCT, pela sigla em inglês), um think tank sem fins lucrativos.
Além disso, para a China, os VEs também tinham o potencial de resolver vários outros problemas importantes, como reduzir a poluição do ar e a dependência de petróleo importado, além de reconstruir a economia do país após a crise financeira de 2008. Parecia uma vitória para Pequim.
A China já tinha algumas vantagens estruturais. Embora a fabricação de veículos elétricos envolva uma tecnologia diferente, ela ainda requer a cooperação da cadeia existente de suprimentos de automóveis, e a China tinha uma relativamente boa. As capacidades de fabricação e matérias-primas baratas que sustentavam suas fábricas de carros a gasolina também poderiam ser alteradas para apoiar uma nascente indústria de VEs.
Assim, o governo chinês tomou medidas para investir em tecnologias relacionadas já em 2001. Naquele ano, a tecnologia de veículos elétricos foi introduzida como um projeto prioritário de pesquisa científica no Plano Quinquenal da China, o plano econômico de mais alto nível do país.
Então, em 2007, a indústria teve um incentivo significativo quando Wan Gang, um engenheiro automotivo que trabalhou para a Audi na Alemanha por uma década, tornou-se ministro da ciência e tecnologia da China. Wan era um grande fã de veículos elétricos e chegou a testar o primeiro modelo elétrico da Tesla, o Roadster, em 2008, ano em que foi lançado. As pessoas agora atribuem a Wan a decisão nacional de apostar tudo nos VEs. Desde então, o desenvolvimento de veículos elétricos tem sido consistentemente priorizado no planejamento econômico nacional da China.
Então, o que exatamente o governo fez?
O governo chinês é ótimo em concentrar recursos nas indústrias que deseja desenvolver e isso é algo que está enraizado na natureza do sistema econômico do país. Recentemente ele tem feito o mesmo para semicondutores.
A partir de 2009, o país começou a distribuir subsídios financeiros para empresas de veículos elétricos para a produção de ônibus, táxis ou carros para consumidores individuais. Naquele ano, menos de 500 VEs foram vendidos na China. Mas mais dinheiro significava que as empresas poderiam continuar investindo em melhorias para os seus modelos. Isso também significava que os consumidores poderiam gastar menos para obter um veículo elétrico próprio.
De 2009 a 2022, o governo investiu mais de 200 bilhões de RMB (US$ 29 bilhões) em subsídios relevantes e incentivos fiscais. Embora a política de subsídios tenha terminado oficialmente no final do ano passado e tenha sido substituída por um sistema mais voltado para o mercado chamado “créditos duplos”, ela já havia surtido o efeito pretendido: os mais de 6 milhões de VEs vendidos na China em 2022 representaram mais da metade das vendas globais de veículos deste setor.
O governo também ajudou as empresas nacionais de veículos elétricos a se manterem em seus primeiros anos, distribuindo contratos públicos. Por volta de 2010, antes que o mercado consumidor os aceitasse totalmente, os primeiros veículos elétricos chineses já faziam parte de vasto sistema de transporte público.
“O sistema público de transporte chinês conta com milhões de veículos, como ônibus, táxis etc. O governo fornecia incentivos financeiros e contratuais para a compra de muitos veículos, o que meio que gerava receita”, diz Ilaria Mazzocco, pesquisadora sênior em economia e negócios chineses no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. “Além do elemento financeiro, também forneceu muitos dados [de testes] para essas empresas”.
Mas subsídios e incentivos fiscais ainda não são tudo. Havia ainda outras políticas estaduais que encorajavam os indivíduos a comprar VEs. Em cidades populosas como Pequim, as placas dos carros são controladas há mais de uma década e ainda pode levar anos ou custar milhares de dólares para conseguir uma para um carro a gasolina. Mas o processo foi basicamente dispensado para quem decidiu comprar um veículo elétrico.
Os governos locais às vezes também trabalharam em estreita colaboração com empresas de veículos elétricos para personalizar políticas que pudessem ajudar no seu crescimento e adesão. Por exemplo, a BYD, empresa chinesa que atualmente desafia a dominância da Tesla em VEs, cresceu ao manter um relacionamento próximo com a cidade de Shenzhen, tornando-a a primeira do mundo a ter uma frota de ônibus públicos completamente elétrica.
Ok, então a China lidera o mercado de veículos elétricos. Mas qual é o lugar da Tesla, a fabricante de veículos deste segmento mais popular, nessa história?
A ascensão da Tesla como a maior empresa de veículos elétricos está profundamente entrelaçada com o desenvolvimento desse mercado na China.
Quando o governo chinês distribuiu subsídios, não os limitou às empresas nacionais. “Na minha opinião, isso foi muito inteligente”, diz Alicia García-Herrero, economista-chefe do setor Ásia-Pacífico da Natixis, uma empresa de gestão de investimentos. “Em vez de irritar os estrangeiros por não oferecer os subsídios que todos os outros estão [recebendo], se você quiser criar o ecossistema, dê esses subsídios a todos, porque eles ficarão presos. Isto é, eles já farão parte desse ecossistema e não poderão mais sair”.
Além dos incentivos financeiros, os governos locais chineses têm cortejado ativamente a Tesla para que ela construísse instalações de produção no país. Sua fábrica gigante de baterias, conhecida como Gigafactory, em Xangai, foi construída com extrema rapidez em 2019, graças às políticas locais favoráveis. “Passar de um terreno baldio para um centro produtivo em cerca de um ano não tem precedentes”, diz Tu. “Isso indica que o governo central, e, particularmente, o de Xangai, eliminou quaisquer barreiras ou bloqueios para levar a Tesla a esse ponto”.
Atualmente, a China é uma parte indispensável da cadeia de suprimentos da Tesla. A Shanghai Gigafactory é hoje o centro de fabricação mais produtivo da empresa e, em 2022, foi responsável por mais da metade dos carros entregues.
Mas os benefícios foram mútuos. Tanto a China quanto a Tesla saíram ganhando dessa parceria. A entrada da empresa no mercado motivou a indústria chinesa de veículos elétricos a melhorar, forçando as marcas chinesas a inovar e tentar alcançá-la em tudo, desde o avanço da tecnologia até a acessibilidade. E agora, até a Tesla precisa descobrir como continuar sendo competitiva no mercado chinês, porque as marcas nacionais estão correndo atrás com determinação e rapidez.
Qual foi o papel que a tecnologia das baterias desempenhou nisso tudo?
A parte mais importante de um VE são as suas células da bateria, que podem representar cerca de 40% do seu custo total. E o fator mais importante para tornar um veículo elétrico comercialmente viável é uma bateria poderosa e confiável, mas que seja acessível.
As empresas chinesas realmente impulsionaram a tecnologia das baterias, diz Max Reid, analista de pesquisa sênior em VEs e serviços da cadeia de suprimentos de baterias da Wood Mackenzie, uma empresa de pesquisa global.
Mais especificamente, na última década, as empresas chinesas defenderam as baterias de fosfato de ferro-lítio, conhecidas como tecnologia LFP, em oposição às baterias de lítio, níquel e manganês cobalto (NMC), que são muito mais populares no Ocidente.
As baterias LFP são mais seguras e baratas, mas inicialmente não eram a primeira escolha em carros porque costumavam ter densidade de energia muito menor e funcionavam mal em baixas temperaturas. Mas enquanto outros estavam abandonando a tecnologia LFP, algumas empresas chinesas de baterias, como a Contemporary Amperex Technology Co. Limited (CATL), passaram uma década pesquisando-as e conseguiram reduzir essa diferença de densidade.
Hoje, a indústria de veículos elétricos está novamente reconhecendo os benefícios das baterias LFP, que representavam um terço de todas as baterias de VEs em setembro de 2022. “Isso mostra o quão longe o LFP chegou e isso se deve exclusivamente à inovação dos fabricantes de baterias chineses. E isso trouxe as [empresas] chinesas de baterias de veículos elétricos para o topo, as empresas de primeira categoria”, diz Reid.
A China também teve uma vantagem importante na fabricação de baterias: ela controla muitos dos materiais necessários. Embora o país não tenha necessariamente os recursos mais naturais para materiais de bateria, ele possui a maior parte da capacidade de refinaria do mundo quando se trata de componentes críticos como cobalto, sulfato de níquel, hidróxido de lítio e grafite. García-Herrero vê o controle da China sobre os materiais químicos como “o controle absoluto do setor, que a China claramente buscou por anos, bem antes que outros sequer percebessem que isso era algo importante”.
Agora, outros países realmente perceberam a importância dos materiais de bateria e estão assinando acordos com o Chile e a Austrália para obter o controle de minas de metais de terras raras. Mas a vantagem da China deu às empresas nacionais uma cadeia de suprimentos estável de longa data.
“As baterias de veículos elétricos fabricadas na China não só têm desconto, mas também estão disponíveis em quantidades muito maiores porque a capacidade de fabricação foi construída na China e continua sendo desenvolvida”, diz Reid.
Como é o mercado de VEs da China agora?
Como resultado de tudo isso, a China agora tem uma demanda nacional enorme por VEs: de acordo com uma pesquisa da empresa de consultoria americana AlixPartners, mais de 50% dos entrevistados chineses pensam em comprar veículos elétricos como seu próximo carro em 2021, a maior proporção no mundo e duas vezes a média global.
Há uma série de opções de fabricação chinesa para esses clientes, incluindo BYD, SAIC-GM-Wuling, Geely, Nio, Xpeng e LiAuto. Enquanto as três primeiras são exemplos de empresas de carros movidos a gasolina que foram bem-sucedidas na mudança para VEs desde o início, os três últimos são startups que começaram do nada e hoje em dia são empresas reconhecidas, tudo isso em menos de uma década.
E a ascensão dessas empresas (e de outros gigantes tecnológicos chineses) coincidiu com a ascensão de uma nova geração de compradores de automóveis que não veem as marcas chinesas como menos prestigiosas ou de pior qualidade do que as marcas estrangeiras. “Como [essa nova geração] cresceu com o Alibaba e a Tencent, ela efetivamente nasceu em um ambiente digital e está muito mais à vontade com as marcas chinesas do que seus pais, que provavelmente ainda comprariam um veículo de marca alemã ou japonesa”, diz Tu. O fato de essas marcas chinesas terem colocado um pouco de nacionalismo em sua estratégia de marketing também ajuda, diz Tu.
Outros países podem reproduzir o sucesso da China?
Muitos países provavelmente estão olhando para a experiência de VEs da China e sentindo inveja. Mas para eles pode não ser tão fácil alcançar o mesmo sucesso, mesmo que façam o mesmo que a China fez.
Enquanto os EUA e alguns países da Europa atendem aos requisitos objetivos para impulsionar suas próprias indústrias de veículos elétricos, como capacidade tecnológica e cadeias de suprimentos consolidadas, He, do ICCT observa que eles também têm sistemas políticos diferentes. “Este país está disposto a investir neste setor? Está disposto a dar proteção especial a esta indústria e permitir que ela desfrute de um nível extremamente alto de prioridade política por um longo tempo?”, ela pergunta. “Isso é difícil de dizer”.
“Acho que a pergunta central é: um país como a Índia ou o Brasil conseguiria reproduzir isso?” Mazzocco pergunta. Esses países não têm uma indústria automobilística tradicional tão forte quanto a da China e também não têm o histórico sofisticado do governo chinês para lidar com políticas industriais abrangentes por meio de uma diversa gama de ferramentas políticas, incluindo créditos, subsídios, acordos de uso da terra, isenções fiscais e contratos públicos. Mas a experiência da China sugere que os veículos elétricos podem ser uma oportunidade para os países em desenvolvimento ultrapassarem os países desenvolvidos.
“Não é que você não possa reproduzi-lo, mas a China tem décadas de experiência em incentivar e impulsionar esses [sistemas]”, diz Mazzocco.
As marcas chinesas agora estão à procura de outros mercados. Que desafios eles estão enfrentando?
Pela primeira vez, as empresas chinesas de veículos elétricos sentem que têm a chance de se expandir para fora da China e se tornarem marcas globais. Algumas delas já estão entrando no mercado europeu e até pensando em ir para os EUA, apesar de seu mercado saturado e da delicada situação política. Os carros a gasolina chineses nunca nem se quer sonharam em fazer isso.
No entanto, sua linguagem e estratégias de marketing podem ter que mudar para outros mercados. Elas precisarão se adaptar aos diferentes padrões técnicos e serviços de software preferidos do setor. E terão que aprender a acomodar diferentes hábitos de consumo e solicitações de atendimento.
“Acho que subestimamos o fato de que empresas como a Toyota ou a Honda se sentem confortáveis em navegar em diferentes mercados, mas para essas empresas, isso foi algo que levou décadas de experiência, e nem sempre parecia estar dando certo para elas”, diz Mazzocco.
No atual ambiente geopolítico, essas empresas também estão se tornando vulneráveis ao entrar em mais países que não mantêm exatamente boas relações com a China. Algumas delas podem querer proteger suas próprias indústrias automobilísticas locais, e outras podem até ver a entrada de marcas chinesas como um risco à segurança nacional.
Por essas e outras razões, o maior potencial de crescimento provavelmente virá da “Ásia emergente”, diz García-Herrero. Essa região continuará precisando de mais veículos elétricos para sua transição energética, mesmo depois que o mercado nacional da China ficar saturado.
É por isso que os benefícios do foco da China no fornecimento de VEs são duplos: reduz a necessidade da China de importar carros de países ocidentais e cria outra indústria de exportação duradoura. Alguns países, como a Indonésia, já estão buscando investimentos chineses para construir fábricas de VEs no país.
Em 2022, a China exportou 679.000 veículos elétricos, um aumento de 120% em relação ao ano anterior. Não há motivos para duvidar que os números crescerão ainda mais daqui para frente.
Imagem: Counterpoint’s Global Passenger Vehicle Model Sales Tracker, Q4 2022.