Liderar ou ser liderado pela IA?

Uma das melhores charges recentes sobre IA traz, de um lado, uma pessoa feliz, pois “a IA transforma poucos tópicos em um grande e-mail que eu pareço ter escrito”, enquanto, do outro lado, quem recebe o e-mail está feliz, pois existe uma IA que “resume grandes e-mails que eu finjo ter lido em tópicos”. A charge é de Tom Fishburne, da Marketoonist, e reflete uma realidade da era da Inteligência Artificial e da internet até aqui.

O início: sites e buscadores

Uma estratégia comum no jornalismo é começar uma reportagem com a história de uma pessoa. Um exemplo seria “Maria da Penha, de Campinas, acordou cedo e, ao se levantar, ouviu seu rádio relógio sugerir um café… Isso mostra como uma música pode impactar, etc.”

Para os leitores, isso aproxima o tema do cotidiano, ajudando na compreensão. Porém, na ansiedade de escrever textos que aparecem com maior destaque nos buscadores, redatores e agências especializadas em SEO (Search Engine Optimization) passaram a usar técnicas de otimização que envolvem repetir o texto de abertura, forçar links e aumentar o tempo do leitor na página – não pela qualidade, mas pela forma como sequestram a atenção e a navegação.

O que seria considerado “prolixo” ou confuso no mundo das pessoas é ensinado como técnica de ranqueamento para manipular os mecanismos de busca. Quanto melhor expostos nos buscadores, mais cliques e usuários retêm, gerando receita para o autor. A monetização não se dá pelo interesse genuíno ou pela qualidade do conteúdo, mas pelas técnicas de agradar às máquinas.

Redes sociais e influenciadores

Nas redes sociais, técnicas como “fórmula do crescimento” e outras lendas obrigam os criadores de conteúdo a postar diversas vezes, presos a um guia que os aprisiona para seguir o algoritmo. Tudo porque alguém, teoricamente, descobriu o segredo do algoritmo e, agora, vende cursos sobre o tema.

Esse algoritmo não está a serviço de informar, mas de monetizar interações com publicidade.

Muitos criadores de conteúdo se sentem ansiosos e cansados por terem de seguir tal cartilha. Dezenas de influenciadores desistiram nos últimos anos, não pelo cansaço de tentar informar as pessoas, mas por tentar agradar aos algoritmos.

Redes profissionais

Para chamar a atenção de headhunters, empresas, prospects, chefes, colegas de trabalho e clientes, em que artigos mais profundos ficam de fora, os guias pregam formatos, recomendam fotos, gráficos, textos em bullets, ícones e comentários. Tudo para agradar ao algoritmo e expandir seus posts para mais seguidores.

Um exemplo é o de incluir um link na primeira linha de comentário, em vez de no espaço do post original, não para facilitar a vida dos leitores, mas para agradar à máquina. Não à toa, pessoas comentam posts de outras apenas com “comentando para aumentar alcance”.

Outro exemplo é recortar conteúdos sem contexto para justificar um conteúdo popular. Para pegar carona nos temas populares de SAAS (software as a service) e valor das empresas (“valuation”), um canal popular de tecnologia publicou, sob o título “O fim do SAAS”, um post comparando a variação do valor dessas empresas. Como se existisse correlação, os autores fazem um recorde de 3 meses das ações, nos quais caem entre 5% e 20% os valores das ações de Adobe, Salesforce, Monday e ServiceNow. O post alcança milhares de pessoas sem investigar que as empresas têm negócios muito diferentes ou que, em 2 anos, a Adobe viu suas ações saltarem de 300 para 600 dólares, mudando seu modelo para SAAS.

A investigação – como um bom jornalista faria – foi trocada pela busca de popularidade via obediência ao algoritmo.

Assessoria de imprensa

Um dos grandes negócios para assessorias de imprensa é escrever e responder para executivos nas redes sociais. Empresas contratam serviços para escrever em nome de diretores e presidentes, moderar e responder. Os temas são populares: sono, esporte, férias, erros, o que aprendem com seus filhos pequenos, liderança, entre outros. Sempre evitando opiniões contundentes, para não desagradar às plataformas ou prejudicar a popularidade.

No livro Guardrails: Guiding Human Decisions in the Age of AI, Urs Gasser e Viktor Mayer-Schönberger investigam iniciativas para garantir que a IA seja responsável, ética e benéfica para a sociedade. As regras evitam a geração de conteúdo prejudicial, mas também limitam a diversidade de opiniões.

O resultado de servir às máquinas para ganhar popularidade é o da criação de conteúdo que mistura senso comum com livros de liderança e autoajuda.

Como o Jornalismo se esqueceu dos leitores

Um jornal de grande circulação brasileiro, em seu aplicativo de notícias na versão para assinantes, trouxe, no mesmo dia, os seguintes títulos (resumidos): “Universidade de Oxford abre admissão no Brasil, veja onde”, “Até quando vai a greve do metrô? Veja o que definiu o sindicato”, “Sírio abre faculdade com simuladores, saiba como será”, “Extinção de macaco acende alerta para outra espécie, saiba qual é”.

Na ânsia de ganhar cliques, jornais praticam o chamado clickbait, mesmo para assinantes.

Priorizar a métrica de mais páginas vistas cria mais banners e possibilidades de monetização. Enquanto escrevem para agradar a si mesmos, não escrevem para os leitores, mas para a máquina.

Com o advento da IA generativa, é cada vez mais comum ver textos que terminam com “texto gerado com ajuda da Inteligência Artificial”. Jornalistas trocaram o tempo de investigação por um robô recheado de senso comum, que certamente não sairá dos guardrails.

Oportunidades para as pessoas serem seguidas pela IA

A IA é a união da computação com a estatística. Embora criada há mais de 40 anos, alcançou enorme sucesso nos últimos 2 anos com a IA generativa. Esse poder abre infinitas possibilidades e discussões na sociedade.

Em vez de seguir a IA, as pessoas podem ter, na IA, extensões das suas capacidades.

Esses “braços biônicos” não precisam seguir algoritmos de Big Techs para monetizar com anúncios e nem se basear na busca da popularidade.

A IA pode habilitar a tecnologia de pessoas para pessoas.

Há aplicativos que usam IA para rastrear comportamentos no uso do celular e identificar depressão. Na Medicina, IAs acompanham médicos e psicólogos, descobrindo padrões e revelando anomalias.

Um estudo israelense de 2012 sobre juízes afirmou que estes davam veredictos mais severos quando estavam com fome: enquanto negavam cerca de 35% dos casos de liberdade condicional após o café da manhã, negavam mais de 85% logo antes do almoço. A partir dessa informação, juizados e juízes poderiam criar IAs que os ajudassem a entender melhor suas decisões e possíveis vieses.

Profissionais de Marketing podem gastar menos na compra de mídia substituindo suas segmentações por personas (características demográficas) por grupos de propensão.

Também no Marketing, a IA já ajuda a responder perguntas complexas, como a relevância do investimento em televisão na conversão do e-commerce, bem como a influência de uma loja física nas compras digitais.

Modelos de analytics com RBA(atribuições baseadas em regressão) ajudam profissionais de Marketing a depender menos do último clique feito na busca e a entender o real valor da exposição de mídia em outros lugares, como vídeo e influenciadores.

Na Medicina, medicamentos podem ser testados rapidamente quando a IA simula cenários complexos, “encurtando o tempo” para entender seus efeitos. As ideias são dos cientistas, que criam hipóteses e experimentos. A IA dá os “braços biônicos” até sobre o tempo.

Yuval Harari, autor de Sapiens: Uma breve história da humanidade e Homo Deus: Uma breve história do amanhã, disse: “O perigo é que, se investirmos muito no desenvolvimento da IA e pouco no desenvolvimento da consciência humana, a simples Inteligência Artificial sofisticada dos computadores poderá servir apenas para dar poder à estupidez natural dos humanos.

Que, desta vez, façamos escolhas melhores.

( fonte: MIT Technology Review )